sexta-feira, 7 de junho de 2013

o assunto não são os carros


em "não verás país nenhum" o ignácio de loyola brandão inventou uma são paulo distópica. em certa passagem do livro, o narrador fala de um mega congestionamento que a cidade viveu num passado mais ou menos recente. um congestionamento que travou a cidade inteira. literalmente. pra sempre. sem volta. a solução foi transportar os carros pelo ar e amontoá-los num canto da periferia. segundo o narrador, isso gerou a maior revolta que a cidade já tinha visto. as pessoas quebraram coisas, protestaram, choraram, mas não tinha outra saída. era muito carro pra pouca rua. aí todo mundo foi obrigado a andar de ônibus ou algo assim (e viveram tristes para sempre).

lembro dessa história sempre que noticiam que a cidade bateu mais um recorde de congestionamento, sempre que chove, sempre que a televisão mostra que, de cima, de noite, as marginais são duas cobrinhas luminosas, infinitas, onde os pontinhos de luz se deslocam muito lentamente. e pensei nela quando teve gente criticando uma manifestação feita ontem contra o aumento da tarifa do transporte público falando que os manifestantes (que fecharam por um tempo a 23 de maio, a 9 de julho e a paulista) estavam "impedindo o direito de ir e vir" das outras pessoas. 

não sei muito bem qual seria a eficácia de uma manifestação ou greve que não incomoda. de uma manifestação ou greve que fica num cantinho, que acredita piamente que o outro lado vai querer negociar mesmo que nenhum calo dele aperte. que vai negociar uma decisão que foi dele porque pensou melhor e é bonzinho. provavelmente nenhuma. acho que sabemos que não é assim que as coisas funcionam, né.

se disso nós sabemos, então o que falta esclarecer? que o assunto não são os carros. e não devem ser. era uma manifestação que questionava a disparidade entre os R$ 3,20 que se paga na passagem e o serviço oferecido. contra a ideia de que as pessoas deveriam achar razoável pagar esse valor, mas antes ficar por 20 minutos numa fila esperando pra passar pela catraca do metrô, como acontece nas estações da linha vermelha na zona leste. que é ok demorar quase uma hora entre itaquera e sé. que tudo certo andar em ônibus, trens e metrôs incrivelmente, incrivelmente lotados, e que não dão nem de longe conta da demanda. nem em quantidade e nem em qualidade. quem já viu os trens que saem da luz pra francisco morato entende. o assunto são os milhões de pessoas que, todos os dias, têm o seu direito de ir e vir prejudicado. que precisam e ir e vir numa situação humilhante. em pé, espremido, por horas, com o ônibus preso no trânsito ou o metrô parando a cada 3 minutos. e pagando caro. e quem acha que R$ 0,20 a mais não é nada, é porque não sabe que tem gente que conta moedinha pra pegar ônibus. que acha que o grande drama que vivemos em são paulo são os motoristas que, num dia de manifestação, precisam achar um caminho alternativo.

era sobre isso a manifestação. é sobre isso que precisamos tratar. ok, existe o fato de que o nosso sistema está entrando em colapso de forma orgânica, como resultado do crescimento da população, da cidade e da obsolência da malha de transporte público (que por si só já foi planejada relativamente tarde) (isso sem falar na linha amarela, que nasceu ontem e cujas plataformazinhas de proporções minúsculas fazem pensar que o projeto foi importado de algum desabitado país nórdico). e, indo mais longe ainda, também existem o fato de que a nossa cidade em si nunca, nunca, foi planejada e a teoria de que o brasileiro liga mais para o indivíduo do que para a coisa pública (e por isso mesmo acha que o xis de uma manifestação não é a sua reivindicação coletiva, e sim o efeito sobre o indivíduo à parte). 

mas ok, vamos fazer o que a esse respeito? inventar mais uma gambiarra na plataforma de metrô, pra que as pessoas não corram o risco de cair no trilho? construir pontos de ônibus feitos de vidro e com painéis eletrônicos-interativos, como se a carência da cidade fosse de design e tecnologia? ou mesmo colocar mais linhas, mas ignorando o fato de que sim, tem carro demais nessa cidade, e cada vez mais, e que o trânsito é travado? ou construir às pressas um aerotrem, com o nome de monotrilho? esvaziar a cidade? implodir a sé? nunca questionar que carro é o caminho, a verdade e a vida, até que a distopia do loyola brandão vire verdade? empurrar com a barriga? continuar achando que a relação entre aumento da passagem e inflação é o único parâmetro na hora de aumentar a passagem? que as formas de subsídio do transporte são irretocáveis? não pensando que talvez a cptm precise de trens com menos de 30 anos de uso? que talvez as pessoas não precisassem se deslocar 30km entre casa e trabalho? que qualidade de vida  e mobilidade são termos que precisam ser relacionados com o povão, e não só com alugar uma bicicleta do banco pra andar na paulista num domingo? que todo mundo devia querer usar transporte público, e vê-lo como opção? achando que o direito de ir e vir do cidadão só é sabotado quando tem manifestação na paulista, e só pra quem usa carro? 

sério, o que vamos fazer? era sobre isso a manifestação. não era sobre os carros.