terça-feira, 7 de maio de 2013

sobre isso de que mulheres se detestam

uma das coisas mais importantes que eu aprendi com o feminismo e com as minhas amigas feministas foi dar valor às outras mulheres. pra valer. de verdade. porque veja bem, não faz sentido esperar do mundo um comportamento de maneira ampla, geral e irrestrita se você não o pratica com a mesma abrangência. não faz sentido falar que você merece ser respeitada (pela sua linda, idílica e toda especial subjetividade) e começar com um "ah, mas tem que ver se" quando o assunto é outra mulher. porque veja bem: "a outra mulher", pro mundo, é você. jogada no meio da multidão, como estamos, você também é qualquer uma. e é por isso que qualquer uma merece tudo que você defende pra si mesma. 

aí você pensa "tá bom, então agora eu tenho que defender vagabunda que *insira aqui uma ação antiética*?". calma lá. vamos lembrar que sim,  você pode ser traída e sacaneada por uma mulher, e você pode ficar puta com quem te fez mal. o que quero dizer é que não ir logo jogando pedra na geni, como estamos acostumados, nos permite ver um pouco além e, consequentemente, ver a "acusada" de forma mais justa e humanizada. assim como ao olhar pra, digamos, um viciado em crack, é prudente você não reduzir o vício à "falta de vontade/vergonha na cara" e ignorar todo o background do cara, que pode tê-lo levado (um cara a priori como eu e você) a uma situação tão triste e degradante, não é bom você reduzir as faltas femininas a coisas como "mulher é assim mesmo" (de uma forma orgânica, todo mundo sabe que biologia é destino e etc).


olhe além daquilo que aconteceu. muita mulher age de forma errada porque acredita que é assim mesmo. que mulher é assim mesmo. que o que mais eu poderia fazer. (e muita mulher também age de uma forma errada pra si mesma baseada no mesmo pensamento. eu levo tapa do meu namorado mas tudo bem, namoro é assim mesmo, homem é assim mesmo). mas eu acho que parece meio burro atacar um caso como se fosse um caso único e raro e ignorar que é uma coisa sistêmica, estrutural, que vai se repetir infinitamente caso todo mundo ache que a solução é sempre e somente punir o caso pontual. alguém, em algum momento dessa dinâmica, precisa romper com esse modo de fazer e ver as coisas. de naturalizar o erro na ponta que faz e condenar na ponta que foi prejudicada (e a ponta que faz, pode ter certeza, vai agir como inquisidora quando a parte prejudicada for ela). hate the game, not the player, diriam por aí.


analise o que sustenta a forma como as coisas acontecem no mundo feminino. dizem que as mulheres são inimigas, que se odeiam, que amizade feminina não existe, que mulheres julgam as outras o tempo todo e etc,  e, embora isso possa ser verdade algumas vezes, você acha que é assim porque as mulheres aprenderam que são rivais e internalizaram isso ou por que são naturalmente más umas com as outras?

você tem pelo menos uma amiga mulher de verdade? se sim, já dá pra perceber que essa coisa tá bem longe de ser 8 ou 80, e que então amizade feminina sincera é possível sim. ou vai me dizer que só você e suas amigas que são especiais, e  que as outras são vagabundas?  como eu disse ali em cima, pro resto do mundo a outra é você. você tá de boa saindo de casa com um batonzinho rosa snob e chapinha, porque gosta de se sentir bonita, mas a rodinha mais próxima pra quem você for estranha pode estar te julgando. da mesma forma forma como você julgaria outra estranha. e essa estranha por sua vez acha que a vagabunda é você e etc, sabe? 

quer dizer, não tem saída. a não ser que você aceite aceitar as outras mulheres. indo com calma. dando o voto de confiança que você gostaria de ter delas. dando uma chance à amizade, à cumplicidade, julgando menos e, consequentemente, achando menos que a vida das outras é de te derrubar (fala a verdade: você vive pra derrubar as outras mulheres? pra fazê-las chorar no banheiro pensando em como você é linda e sensacional? sério que sua vida gira em torno da vida das outras? por que então as outras seriam assim?) (não quero dizer que não existam mulheres competitivas, porque muitas aprenderam que é isso aí e blablablá e/ou simplesmente são pessoas passiva-agressivas narcisistas. existem. mas ao mesmo tempo muitas mulheres te acham bonita e outras simplesmente cagam pro seu cabelo novo porque tão ocupadas com os próprios problemas).

as mulheres (de forma simbólica) parecem ligadas por uma estranha força de coesão. não pode-se negar que vivemos juntas. que nos espelhamos umas nas outras e etc. a lenda diz que mulheres vão sempre juntas ao banheiro (pelo simples motivo de que o banheiro é um lugar como qualquer outro onde se pode travar contato, o que significa que homens também poderiam/deveriam ir ao banheiro juntos. não precisa conversar no mictório, pode ser quando tá lavando a mão) e existe, num nível mainstream, a instituição do espaço feminino, da conversa de mulher, da coisa de mulher. acontece que, apesar disso, e dentro disso, nossos laços ainda são... antagônicos. uma espécie de cumplicidade maldosa, insegura, com o pé atrás. e muitas vezes uma cumplicidade que nasce "pelos motivos errados", tipo "vou falar isso com uma mulher porque isso é coisa de mulher, tipo cozinha ou cuidar dos filhos". estamos unidas em chás de bebê mas desunidas, distantes, virando umas contra as outras com facilidade, por medo, preguiça, ignorância, porque ouvimos e reproduzimos tantas coisas negativas sobre nós mesmas.


sobre nós mesmas. no fim, todas as subcategorias de mulheres são muito solúveis. porque de modo geral, de modo amplo, todas são qualquer uma. uma vez li num livro tipo a reflexão do pai de uma adolescente que pensava "você adorava fazer sacanagem com as meninas porque eram as filhas dos outros. acontece que a sua filha, por outros, é a filha dos outros". acho que é o mesmo raciocínio. e não tem nada de errado em ser qualquer uma. em ser igual. é, talvez, a única coisa que pode nos salvar mesmo das injustiças. as mulheres vão parar de falar mal de qualquer uma quando percebermos que todo mundo é qualquer uma. e que qualquer uma merece respeito. porque você, que é qualquer uma, também deseja isso.


ou como lindamente tina fey sintetizou em mean girls: "parem de chamar umas às outras de vadias e vagabundas, isso só autoriza os rapazes a fazerem o mesmo". aliás, toda a cena das meninas percebendo que todas já foram vítimas de fofoca, já fofocaram e já foram chamadas de galinhas, é sensacional (esse filme devia ser exibido nas escolas). "parece que temos alguns delitos de meninas contra meninas aqui", disse a tina. vamos tentar parar?

p.s: chuto que homens também são falsos e fofoqueiros entre si, só alimentam uma cultura positiva em torno de si mesmos. 

(nota: sobre ser bonita: é triste que não existam medidas neutras de beleza, então somos de modo geral obrigados a fazer comparações. a regra é a mesma pro seu corpo e pra carros: quem é mais bonito do que quem? quem tem mais? se sentir bonita e ainda assim não botar as amiguinhas pra baixo (internamente) é assunto complexo e que mereceria outro texto sem sentido. mas foi uma das coisas que me motivou a escrever isso, então quero pontuar que precisamos alimentar uma auto-imagem positiva SEM, pra isso, usar a menina feia como comparativo. impossível? pode ser. mas é uma situação muito instável e que, de alguma forma, te mantem presa. acredito que a construção dessa auto-imagem boa (que não quer dizer maravilhosa. não acredito mesmo que alguém precise porque precise se achar maravilhosa. só o suficiente pra você não se sentir tão mal na própria pele e ter motivos pra gostar de si) passa, justamente, por não dar tanto peso àquilo que estamos acostumadas a achar a mulher é (inclusive quando usamos isso como parâmetro-mediador entre a nossa vida e das outras, como se não fôssemos nada além disso): o corpo)


quinta-feira, 2 de maio de 2013

a era do recalque

lá no final do século 19 freud observou que algumas pessoas condenavam certas posturas porque, secretamente, desejavam tê-las. a auto-censura criava uma aversão à coisa, fazendo com que o desejo fosse sepultado lá no fundo (carece de fontes, nunca li a sério sobre o assunto). o desejo era recalcado (enterrado, reprimido), e a pessoa saía falando mal do objeto.

*

o professor que nos fez ler freud na faculdade de jornalismo disse que o austríaco era uma grande divulgador das suas descobertas e teorias, e que por isso escrevia de um jeito simples e sedutor - para arrebanhar pessoas. o que me faz pensar que talvez ele viesse a gostar do que aconteceu alguns anos depois com parte da sua obra. 

*

em algum momento do começo do século 21, a cultura popular brasileira encontrou aquilo que freud via no seu divã vienense mais de uma centena de anos antes. alguém notou que as mulheres que criticavam as mulheres bonitas, sensuais, de derrière avantajado e que desciam até o chão o faziam porque provavelmente tinham inveja dos seus corpos e malemolência. eram recalcadas.

até aí nenhum problema. mas aconteceu algo (e ok, isso também não é um problema, é só curioso), acho, talvez sem precedentes na nossa história: uma expressão da psicanálise (vou utilizar um chavão) caiu na boca do povo. não sei (não sei mesmo, só passei a participar do mundo de forma mais ativa de uns oito anos pra cá) se algum dia você ia comprar tubaína no boteco e ouvia alguém falando “inconsciente”. ou ia numa festa e a música falava sobre arquétipos. ou insira aqui qualquer termo de freud, jung, lacan, melanie klein (insira você, eu não entendo nada disso). acho que o recalque foi a conquista final, última, radical e definitiva de freud. do além-túmulo, se é que, como disse meu professor, ele queria ver suas ideias divulgadas, ele está contente pelo seu encontro com o povo brasileiro.

acontece, caro sigmund, que (não tirando o mérito do seu trabalho), o recalque pegou porque o germe da coisa já estava em nós. a recalcada (sempre no feminino, por algum motivo, e aí mais uma vez nossas inclinações se encontram) é nada mais que a nossa invejosa. é a moça feia que se esforça pra ser feia porque aí se polariza com as bonitas e se torna mais apta a odiar as bonitas, a condenar as bonitas, a apontar o dedo pras bonitas e gozar secretamente quando as bonitas quebram a cara no amor ou são tidas como burras pelo pessoal da escola. é a velha desocupada que fica na janela ou no portão de casa puxando papo com os vizinhos aleatórios que vão passando e colhendo informações sobre as famílias vizinhas, os casamentos, os fracassos, as brigas, as filhas moças bonitas potencialmente piranhas, porque ela, ela mesma, é solteirona ou viúva, sozinha, abandonada e cria um papagaio. a recalcada é a conhecida mulher que precisa daquilo, que precisa de macho, a mal comida, a que precisa dar. a recalcada veio antes do termo freudiano, e muito, muito antes da sua incorporação ao vocabulário popular. a recalcada é um arquétipo atravessando os tempos.

e especialmente popular aqui no brasil, onde as mulheres precisam ser sensuais ou santas (atenção: nenhuma das escolhas é livre de prejuízos). o brasil é o campo fértil do recalque. imagine você as chances de nascer uma recalcada na islândia. eles nunca foram cristãos, então não carregam tanta culpa sobre seus corpos e sexualidade. o sol raramente dá as caras, o que faz as pessoas andarem com as pernas e colos cobertos. é tudo mais simples e coberto. o recalque precisa que as pessoas lidem de formas diferentes com seus desejos. que todos queiram, mas que nem todos façam, porque há ordens para não fazer. que todos queiram, mas nem todos consigam. o recalque nasce dessa dicotomia, dessa dialética do desejo, do querer e não poder. e aqui, enquanto o calor pressiona pelo descobrimento dos corpos, a mentalidade católica fala que não, que não é assim, que é expressamente proibido etc. aí nascem a divergência, os desejos reprimidos e a personagem da década: a recalcada. (lembrei agora: o recalque é abrangente e democrático. o recalque é a virose dos desarranjos de personalidade, o diagnóstico pau pra toda obra. porque as moças que descem até o chão não estão livres do recalque. fazer quadradinho de oito não te impede de ser chamada de recalcada).

falo isso porque faz uns dias que na televisão uma personagem na novela chamou a outra de recalcada. e porque uma adolescente na grande são paulo esfaqueou um colega que a chamava de recalcada. existem músicas de funk que tratam exclusivamente desse sentimento. uns anos atrás vi num ponto de ônibus um homem da classe trabalhadora com um boné de crochê onde se lia, abaixo do nome de um bairro da zona norte, “os recaucado treme”. 

a recalcada é popular. o recalque existe e ninguém duvida. e parece ser tão familiar hoje ao brasileiro quanto a ideia de que jesus nasceu da virgem maria em 25 de dezembro e que políticos não prestam. é ideia sacramentada. é dogma. 

é difícil que algum dia admitamos abertamente e sem censura, na televisão ou durante um almoço, que freud estava corretíssimo a respeito do complexo de édipo, eu mesmo tô ok com o fato de que meu filhinho de três anos deseja secretamente que eu morra para tomar o meu lugar. ou mesmo à ideia de que nossos sonhos, invariavelmente, expressam desejos (motivo: recalque. recalque strikes again). mas o recalque pegou. o recalque é batata.

é um diagnóstico. agora falta o tratamento (porque eu fiquei sinceramente preocupada com o fato de uma menina esfaquear um colega de classe porque recebeu, entre outros títulos, o de recalcada). freud, vem consertar a bagunça.