segunda-feira, 31 de março de 2014

""escrito nas estrelas""

devem existir centenas de explicações de especialistas do porque horóscopo (a pontinha do iceberg da astrologia) angaria tanta atenção. talvez porque nossa atração pelo cosmos aparece casada com a ideia de que, quem sabe, tudo aquilo que rola no céu seja sobre nós, ou que nós sejamos um reflexo do que acontece no céu, lá além do olho nu. um antropocentrismo bem bobo ou um instinto de unção com o universo, a depender do julgamento.

ocorre que, por isso, os horóscopos diários estão por toda parte. em jornaizinhos, nos jornalões, nas televisões do transporte público, que passam as previsões dos 12 signos intercalando com vídeos engraçados da internet, pegadinhas, propaganda do metrô, propaganda e notícias em geral.

mas vamos falar um pouco mais desse horóscopo. sim, cada um acredita no que quer e etc, mas acho prudente ao menos avaliar quem é seu emissor e o que ele anda falando por aí, não só pra você - aliás, essa deveria ser a conclusão número um da astrologia, uma técnica (ciência, diriam alguns) que tenta explicar todos os seres humanos através do movimento dos astros (veja bem: dos *astros*): isso é mais do que sobre você. embora (ironicamente) seja sobre essa a ideia que a "astrologia mainstream" trabalhe vamos deixar esse princípio um pouco de lado.

mas o problema não é a astrologia ou seus entusiastas, e sim o que se faz no horóscopo diário. se alguém ler as previsões/dicas pra todos os signos verá que, na verdade, na maior parte das vezes (falo do horóscopo do metrô, que eu vejo todo dia), se trata de conselhos aleatórios que servem pra qualquer um a qualquer momento. "fique longe de conflitos", "se preserve", "cuide mais de você", "bom dia pra tirar planos do papel".

sem querer ser o polemistazinho que se acha esperto quando diz "ORLY?" pra ideias alheias, mas todo dia é dia de se preservar e tirar planos do papel. sempre é bom ficar na sua, ser sábio, tomar decisões com calma, ponderar, comer bem, falar com um amigo. e sempre é bom achar que hoje vai ser aquele dia de sorte nos negócios ou no amor. todo dia a sorte é bem vinda. ou não?

quero dizer que essa forma de fazer as coisas diminui ainda mais qualquer mínimo respeito que as pessoas tenham por horóscopo ou mesmo pela astrologia de modo geral. e ainda corre-se o risco de que os que acreditam se surpreenderem qualquer dia balançando orelhinhas de burro, porque o que "vá com calma na hora de discutir projetos no trabalho" diz de especial para mim, pessoa com o sol em touro? o que garante que isso não é mais adequado pra quem é de leão ou libra? por que você está falando isso pra mim, no dia de hoje? (agora pode retomar o princípio de que o ponto final da trama é você. mas um você melhor diagramado).

os caras não citam nenhum planetinha. nenhum "urano entra na sua casa 6 e te deixa predisposto a brigar". nem esse recurso de "olha, eu juro que há provas e causas concretas, mesmo que você não seja capaz de atestá-las". nenhuma justificativa. só conselhos aleatórios. e ainda dizem que o horóscopo é "parceria" com um grande site do tipo. sei.

de modo que deixo aqui minha sugestão pros caras, que é ou publicar frases dos momentos de sabedoria (com o devido crédito e honestidade) ou fazer um horóscopo aleatório às avessas num estilo dollynho, com "briga com o chefe sim" e "não cuide da saúde hoje". e aí qualquer um poderia tomar pra si o conselho que mais agradasse. sem a sensação de que está traindo os astros.



na imagem: a aliança dos mágicos em arrested development pede para ser levada à sério

sexta-feira, 7 de junho de 2013

o assunto não são os carros


em "não verás país nenhum" o ignácio de loyola brandão inventou uma são paulo distópica. em certa passagem do livro, o narrador fala de um mega congestionamento que a cidade viveu num passado mais ou menos recente. um congestionamento que travou a cidade inteira. literalmente. pra sempre. sem volta. a solução foi transportar os carros pelo ar e amontoá-los num canto da periferia. segundo o narrador, isso gerou a maior revolta que a cidade já tinha visto. as pessoas quebraram coisas, protestaram, choraram, mas não tinha outra saída. era muito carro pra pouca rua. aí todo mundo foi obrigado a andar de ônibus ou algo assim (e viveram tristes para sempre).

lembro dessa história sempre que noticiam que a cidade bateu mais um recorde de congestionamento, sempre que chove, sempre que a televisão mostra que, de cima, de noite, as marginais são duas cobrinhas luminosas, infinitas, onde os pontinhos de luz se deslocam muito lentamente. e pensei nela quando teve gente criticando uma manifestação feita ontem contra o aumento da tarifa do transporte público falando que os manifestantes (que fecharam por um tempo a 23 de maio, a 9 de julho e a paulista) estavam "impedindo o direito de ir e vir" das outras pessoas. 

não sei muito bem qual seria a eficácia de uma manifestação ou greve que não incomoda. de uma manifestação ou greve que fica num cantinho, que acredita piamente que o outro lado vai querer negociar mesmo que nenhum calo dele aperte. que vai negociar uma decisão que foi dele porque pensou melhor e é bonzinho. provavelmente nenhuma. acho que sabemos que não é assim que as coisas funcionam, né.

se disso nós sabemos, então o que falta esclarecer? que o assunto não são os carros. e não devem ser. era uma manifestação que questionava a disparidade entre os R$ 3,20 que se paga na passagem e o serviço oferecido. contra a ideia de que as pessoas deveriam achar razoável pagar esse valor, mas antes ficar por 20 minutos numa fila esperando pra passar pela catraca do metrô, como acontece nas estações da linha vermelha na zona leste. que é ok demorar quase uma hora entre itaquera e sé. que tudo certo andar em ônibus, trens e metrôs incrivelmente, incrivelmente lotados, e que não dão nem de longe conta da demanda. nem em quantidade e nem em qualidade. quem já viu os trens que saem da luz pra francisco morato entende. o assunto são os milhões de pessoas que, todos os dias, têm o seu direito de ir e vir prejudicado. que precisam e ir e vir numa situação humilhante. em pé, espremido, por horas, com o ônibus preso no trânsito ou o metrô parando a cada 3 minutos. e pagando caro. e quem acha que R$ 0,20 a mais não é nada, é porque não sabe que tem gente que conta moedinha pra pegar ônibus. que acha que o grande drama que vivemos em são paulo são os motoristas que, num dia de manifestação, precisam achar um caminho alternativo.

era sobre isso a manifestação. é sobre isso que precisamos tratar. ok, existe o fato de que o nosso sistema está entrando em colapso de forma orgânica, como resultado do crescimento da população, da cidade e da obsolência da malha de transporte público (que por si só já foi planejada relativamente tarde) (isso sem falar na linha amarela, que nasceu ontem e cujas plataformazinhas de proporções minúsculas fazem pensar que o projeto foi importado de algum desabitado país nórdico). e, indo mais longe ainda, também existem o fato de que a nossa cidade em si nunca, nunca, foi planejada e a teoria de que o brasileiro liga mais para o indivíduo do que para a coisa pública (e por isso mesmo acha que o xis de uma manifestação não é a sua reivindicação coletiva, e sim o efeito sobre o indivíduo à parte). 

mas ok, vamos fazer o que a esse respeito? inventar mais uma gambiarra na plataforma de metrô, pra que as pessoas não corram o risco de cair no trilho? construir pontos de ônibus feitos de vidro e com painéis eletrônicos-interativos, como se a carência da cidade fosse de design e tecnologia? ou mesmo colocar mais linhas, mas ignorando o fato de que sim, tem carro demais nessa cidade, e cada vez mais, e que o trânsito é travado? ou construir às pressas um aerotrem, com o nome de monotrilho? esvaziar a cidade? implodir a sé? nunca questionar que carro é o caminho, a verdade e a vida, até que a distopia do loyola brandão vire verdade? empurrar com a barriga? continuar achando que a relação entre aumento da passagem e inflação é o único parâmetro na hora de aumentar a passagem? que as formas de subsídio do transporte são irretocáveis? não pensando que talvez a cptm precise de trens com menos de 30 anos de uso? que talvez as pessoas não precisassem se deslocar 30km entre casa e trabalho? que qualidade de vida  e mobilidade são termos que precisam ser relacionados com o povão, e não só com alugar uma bicicleta do banco pra andar na paulista num domingo? que todo mundo devia querer usar transporte público, e vê-lo como opção? achando que o direito de ir e vir do cidadão só é sabotado quando tem manifestação na paulista, e só pra quem usa carro? 

sério, o que vamos fazer? era sobre isso a manifestação. não era sobre os carros.



terça-feira, 7 de maio de 2013

sobre isso de que mulheres se detestam

uma das coisas mais importantes que eu aprendi com o feminismo e com as minhas amigas feministas foi dar valor às outras mulheres. pra valer. de verdade. porque veja bem, não faz sentido esperar do mundo um comportamento de maneira ampla, geral e irrestrita se você não o pratica com a mesma abrangência. não faz sentido falar que você merece ser respeitada (pela sua linda, idílica e toda especial subjetividade) e começar com um "ah, mas tem que ver se" quando o assunto é outra mulher. porque veja bem: "a outra mulher", pro mundo, é você. jogada no meio da multidão, como estamos, você também é qualquer uma. e é por isso que qualquer uma merece tudo que você defende pra si mesma. 

aí você pensa "tá bom, então agora eu tenho que defender vagabunda que *insira aqui uma ação antiética*?". calma lá. vamos lembrar que sim,  você pode ser traída e sacaneada por uma mulher, e você pode ficar puta com quem te fez mal. o que quero dizer é que não ir logo jogando pedra na geni, como estamos acostumados, nos permite ver um pouco além e, consequentemente, ver a "acusada" de forma mais justa e humanizada. assim como ao olhar pra, digamos, um viciado em crack, é prudente você não reduzir o vício à "falta de vontade/vergonha na cara" e ignorar todo o background do cara, que pode tê-lo levado (um cara a priori como eu e você) a uma situação tão triste e degradante, não é bom você reduzir as faltas femininas a coisas como "mulher é assim mesmo" (de uma forma orgânica, todo mundo sabe que biologia é destino e etc).


olhe além daquilo que aconteceu. muita mulher age de forma errada porque acredita que é assim mesmo. que mulher é assim mesmo. que o que mais eu poderia fazer. (e muita mulher também age de uma forma errada pra si mesma baseada no mesmo pensamento. eu levo tapa do meu namorado mas tudo bem, namoro é assim mesmo, homem é assim mesmo). mas eu acho que parece meio burro atacar um caso como se fosse um caso único e raro e ignorar que é uma coisa sistêmica, estrutural, que vai se repetir infinitamente caso todo mundo ache que a solução é sempre e somente punir o caso pontual. alguém, em algum momento dessa dinâmica, precisa romper com esse modo de fazer e ver as coisas. de naturalizar o erro na ponta que faz e condenar na ponta que foi prejudicada (e a ponta que faz, pode ter certeza, vai agir como inquisidora quando a parte prejudicada for ela). hate the game, not the player, diriam por aí.


analise o que sustenta a forma como as coisas acontecem no mundo feminino. dizem que as mulheres são inimigas, que se odeiam, que amizade feminina não existe, que mulheres julgam as outras o tempo todo e etc,  e, embora isso possa ser verdade algumas vezes, você acha que é assim porque as mulheres aprenderam que são rivais e internalizaram isso ou por que são naturalmente más umas com as outras?

você tem pelo menos uma amiga mulher de verdade? se sim, já dá pra perceber que essa coisa tá bem longe de ser 8 ou 80, e que então amizade feminina sincera é possível sim. ou vai me dizer que só você e suas amigas que são especiais, e  que as outras são vagabundas?  como eu disse ali em cima, pro resto do mundo a outra é você. você tá de boa saindo de casa com um batonzinho rosa snob e chapinha, porque gosta de se sentir bonita, mas a rodinha mais próxima pra quem você for estranha pode estar te julgando. da mesma forma forma como você julgaria outra estranha. e essa estranha por sua vez acha que a vagabunda é você e etc, sabe? 

quer dizer, não tem saída. a não ser que você aceite aceitar as outras mulheres. indo com calma. dando o voto de confiança que você gostaria de ter delas. dando uma chance à amizade, à cumplicidade, julgando menos e, consequentemente, achando menos que a vida das outras é de te derrubar (fala a verdade: você vive pra derrubar as outras mulheres? pra fazê-las chorar no banheiro pensando em como você é linda e sensacional? sério que sua vida gira em torno da vida das outras? por que então as outras seriam assim?) (não quero dizer que não existam mulheres competitivas, porque muitas aprenderam que é isso aí e blablablá e/ou simplesmente são pessoas passiva-agressivas narcisistas. existem. mas ao mesmo tempo muitas mulheres te acham bonita e outras simplesmente cagam pro seu cabelo novo porque tão ocupadas com os próprios problemas).

as mulheres (de forma simbólica) parecem ligadas por uma estranha força de coesão. não pode-se negar que vivemos juntas. que nos espelhamos umas nas outras e etc. a lenda diz que mulheres vão sempre juntas ao banheiro (pelo simples motivo de que o banheiro é um lugar como qualquer outro onde se pode travar contato, o que significa que homens também poderiam/deveriam ir ao banheiro juntos. não precisa conversar no mictório, pode ser quando tá lavando a mão) e existe, num nível mainstream, a instituição do espaço feminino, da conversa de mulher, da coisa de mulher. acontece que, apesar disso, e dentro disso, nossos laços ainda são... antagônicos. uma espécie de cumplicidade maldosa, insegura, com o pé atrás. e muitas vezes uma cumplicidade que nasce "pelos motivos errados", tipo "vou falar isso com uma mulher porque isso é coisa de mulher, tipo cozinha ou cuidar dos filhos". estamos unidas em chás de bebê mas desunidas, distantes, virando umas contra as outras com facilidade, por medo, preguiça, ignorância, porque ouvimos e reproduzimos tantas coisas negativas sobre nós mesmas.


sobre nós mesmas. no fim, todas as subcategorias de mulheres são muito solúveis. porque de modo geral, de modo amplo, todas são qualquer uma. uma vez li num livro tipo a reflexão do pai de uma adolescente que pensava "você adorava fazer sacanagem com as meninas porque eram as filhas dos outros. acontece que a sua filha, por outros, é a filha dos outros". acho que é o mesmo raciocínio. e não tem nada de errado em ser qualquer uma. em ser igual. é, talvez, a única coisa que pode nos salvar mesmo das injustiças. as mulheres vão parar de falar mal de qualquer uma quando percebermos que todo mundo é qualquer uma. e que qualquer uma merece respeito. porque você, que é qualquer uma, também deseja isso.


ou como lindamente tina fey sintetizou em mean girls: "parem de chamar umas às outras de vadias e vagabundas, isso só autoriza os rapazes a fazerem o mesmo". aliás, toda a cena das meninas percebendo que todas já foram vítimas de fofoca, já fofocaram e já foram chamadas de galinhas, é sensacional (esse filme devia ser exibido nas escolas). "parece que temos alguns delitos de meninas contra meninas aqui", disse a tina. vamos tentar parar?

p.s: chuto que homens também são falsos e fofoqueiros entre si, só alimentam uma cultura positiva em torno de si mesmos. 

(nota: sobre ser bonita: é triste que não existam medidas neutras de beleza, então somos de modo geral obrigados a fazer comparações. a regra é a mesma pro seu corpo e pra carros: quem é mais bonito do que quem? quem tem mais? se sentir bonita e ainda assim não botar as amiguinhas pra baixo (internamente) é assunto complexo e que mereceria outro texto sem sentido. mas foi uma das coisas que me motivou a escrever isso, então quero pontuar que precisamos alimentar uma auto-imagem positiva SEM, pra isso, usar a menina feia como comparativo. impossível? pode ser. mas é uma situação muito instável e que, de alguma forma, te mantem presa. acredito que a construção dessa auto-imagem boa (que não quer dizer maravilhosa. não acredito mesmo que alguém precise porque precise se achar maravilhosa. só o suficiente pra você não se sentir tão mal na própria pele e ter motivos pra gostar de si) passa, justamente, por não dar tanto peso àquilo que estamos acostumadas a achar a mulher é (inclusive quando usamos isso como parâmetro-mediador entre a nossa vida e das outras, como se não fôssemos nada além disso): o corpo)


quinta-feira, 2 de maio de 2013

a era do recalque

lá no final do século 19 freud observou que algumas pessoas condenavam certas posturas porque, secretamente, desejavam tê-las. a auto-censura criava uma aversão à coisa, fazendo com que o desejo fosse sepultado lá no fundo (carece de fontes, nunca li a sério sobre o assunto). o desejo era recalcado (enterrado, reprimido), e a pessoa saía falando mal do objeto.

*

o professor que nos fez ler freud na faculdade de jornalismo disse que o austríaco era uma grande divulgador das suas descobertas e teorias, e que por isso escrevia de um jeito simples e sedutor - para arrebanhar pessoas. o que me faz pensar que talvez ele viesse a gostar do que aconteceu alguns anos depois com parte da sua obra. 

*

em algum momento do começo do século 21, a cultura popular brasileira encontrou aquilo que freud via no seu divã vienense mais de uma centena de anos antes. alguém notou que as mulheres que criticavam as mulheres bonitas, sensuais, de derrière avantajado e que desciam até o chão o faziam porque provavelmente tinham inveja dos seus corpos e malemolência. eram recalcadas.

até aí nenhum problema. mas aconteceu algo (e ok, isso também não é um problema, é só curioso), acho, talvez sem precedentes na nossa história: uma expressão da psicanálise (vou utilizar um chavão) caiu na boca do povo. não sei (não sei mesmo, só passei a participar do mundo de forma mais ativa de uns oito anos pra cá) se algum dia você ia comprar tubaína no boteco e ouvia alguém falando “inconsciente”. ou ia numa festa e a música falava sobre arquétipos. ou insira aqui qualquer termo de freud, jung, lacan, melanie klein (insira você, eu não entendo nada disso). acho que o recalque foi a conquista final, última, radical e definitiva de freud. do além-túmulo, se é que, como disse meu professor, ele queria ver suas ideias divulgadas, ele está contente pelo seu encontro com o povo brasileiro.

acontece, caro sigmund, que (não tirando o mérito do seu trabalho), o recalque pegou porque o germe da coisa já estava em nós. a recalcada (sempre no feminino, por algum motivo, e aí mais uma vez nossas inclinações se encontram) é nada mais que a nossa invejosa. é a moça feia que se esforça pra ser feia porque aí se polariza com as bonitas e se torna mais apta a odiar as bonitas, a condenar as bonitas, a apontar o dedo pras bonitas e gozar secretamente quando as bonitas quebram a cara no amor ou são tidas como burras pelo pessoal da escola. é a velha desocupada que fica na janela ou no portão de casa puxando papo com os vizinhos aleatórios que vão passando e colhendo informações sobre as famílias vizinhas, os casamentos, os fracassos, as brigas, as filhas moças bonitas potencialmente piranhas, porque ela, ela mesma, é solteirona ou viúva, sozinha, abandonada e cria um papagaio. a recalcada é a conhecida mulher que precisa daquilo, que precisa de macho, a mal comida, a que precisa dar. a recalcada veio antes do termo freudiano, e muito, muito antes da sua incorporação ao vocabulário popular. a recalcada é um arquétipo atravessando os tempos.

e especialmente popular aqui no brasil, onde as mulheres precisam ser sensuais ou santas (atenção: nenhuma das escolhas é livre de prejuízos). o brasil é o campo fértil do recalque. imagine você as chances de nascer uma recalcada na islândia. eles nunca foram cristãos, então não carregam tanta culpa sobre seus corpos e sexualidade. o sol raramente dá as caras, o que faz as pessoas andarem com as pernas e colos cobertos. é tudo mais simples e coberto. o recalque precisa que as pessoas lidem de formas diferentes com seus desejos. que todos queiram, mas que nem todos façam, porque há ordens para não fazer. que todos queiram, mas nem todos consigam. o recalque nasce dessa dicotomia, dessa dialética do desejo, do querer e não poder. e aqui, enquanto o calor pressiona pelo descobrimento dos corpos, a mentalidade católica fala que não, que não é assim, que é expressamente proibido etc. aí nascem a divergência, os desejos reprimidos e a personagem da década: a recalcada. (lembrei agora: o recalque é abrangente e democrático. o recalque é a virose dos desarranjos de personalidade, o diagnóstico pau pra toda obra. porque as moças que descem até o chão não estão livres do recalque. fazer quadradinho de oito não te impede de ser chamada de recalcada).

falo isso porque faz uns dias que na televisão uma personagem na novela chamou a outra de recalcada. e porque uma adolescente na grande são paulo esfaqueou um colega que a chamava de recalcada. existem músicas de funk que tratam exclusivamente desse sentimento. uns anos atrás vi num ponto de ônibus um homem da classe trabalhadora com um boné de crochê onde se lia, abaixo do nome de um bairro da zona norte, “os recaucado treme”. 

a recalcada é popular. o recalque existe e ninguém duvida. e parece ser tão familiar hoje ao brasileiro quanto a ideia de que jesus nasceu da virgem maria em 25 de dezembro e que políticos não prestam. é ideia sacramentada. é dogma. 

é difícil que algum dia admitamos abertamente e sem censura, na televisão ou durante um almoço, que freud estava corretíssimo a respeito do complexo de édipo, eu mesmo tô ok com o fato de que meu filhinho de três anos deseja secretamente que eu morra para tomar o meu lugar. ou mesmo à ideia de que nossos sonhos, invariavelmente, expressam desejos (motivo: recalque. recalque strikes again). mas o recalque pegou. o recalque é batata.

é um diagnóstico. agora falta o tratamento (porque eu fiquei sinceramente preocupada com o fato de uma menina esfaquear um colega de classe porque recebeu, entre outros títulos, o de recalcada). freud, vem consertar a bagunça.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

bizarro e/ou triste

Ontem tava assistindo um programa no Discovery Home&Health (aliás, aparentemente toda a grife Discovery gosta especialmente de dois tipos de programa: o freak show que  exibe anomalias genéticas e o que discorre sobre teorias da conspiração envolvendo extraterrestres e a CIA) sobre "manias bizarras".

Tinha o casal do interior da Inglaterra que tem uma coleção de mais de 200 bonecas do amor (sim, daquele tipo, embora segundo o programa elas não sejam utilizadas por eles com essa finalidade). Tinha a moça americana que vive numa espécie de cápsula do tempo dos anos 50: toda a casa dela é composta por móveis e objetos da época, assim como suas roupas. Ela não ouve música produzida depois de 1959 e não tem celular - mas mora com o namorado, o que faz pensar até que ponto ela está comprometida com a ética daquela década. Tinha a outra moça americana que faz três sessões de bronzeamento artificial por dia, fora as exposições ao sol no jardim de casa. E tinha a dona de casa americana que comia detergente em pó. 

O casal que coleciona bonecas sexuais se dizia feliz com seu hobby. Assim como a moça que simula viver há 60 anos. E mesmo a menina cor de laranja do bronzeamento artificial, sabendo que sua pele vai envelhecer cedo e que pode desenvolver um câncer, é entre descrente e cínica em relação a esse futuro ("é pra isso que existem plásticas e botox", dizia). Já a mulher que comia até dez porções diárias de detergente em pó há 30 anos era infeliz. A tristeza dela ao falar disso que o canal classifica, tal como colecionismo inusitado, de "mania bizarra", era visível.

Ela psicologizou seu problema: segundo ela o hábito começou na adolescência, logo depois de ter sofrido abuso sexual. "É como se eu quisesse me limpar por dentro", explicou. Ela nunca tinha falado sobre isso pra ninguém, e quando contou o caso para a filha, na frente da câmera, pareceu ainda mais triste, e envergonhada. A equipe a levou numa cirurgiã dentista que constatou o efeito do produto de limpeza na boca da mulher: esmalte completamente destruído, dentes seriamente infeccionados. A mulher chorou porque não poderia pagar o tratamento de 15 mil dólares, a dentista se propôs a tratar tudo de graça, caso ela se comprometesse a parar com o vício. 

E daí a gente fica pensando qual é, pro mundo do entretenimento, o limite entre um hábito curioso e inofensivo e uma doença. Porque no final, na audiência, graça, repulsa e pena se confundem e dá na mesma. Se as reações se misturam e viram uma coisa só, o objeto a ser exibido também é de um tipo só. Bizarro.



domingo, 3 de fevereiro de 2013

sobre relevância e ineditismo

O propósito deste blog é a falta de propósito. Ou propósitos nulos. 

Como assim: sempre gostei de escrever, mas desde que passei a fazê-lo na internet (tem uns seis anos isso) comecei a sentir o peso de uma porção de coisas que existem sobre um texto publicado. Quando você escreve para os outros supõe-se, com razão, que você tenha algo importante e/ou interessante para contar. Opiniões acertadas sobre fenômenos da política, da cultura ou da existência humana. Pontos de vista originais. Defesa acurada de opiniões, argumentação feroz e etc.

Acontece que desde aquela época nunca consegui me ver como uma pessoa de pontos de vista originais, relevantes ou formadora de opinião. Sempre achei que minhas opiniões são pouco perspicazes e revolucionárias. Na faculdade de jornalismo na qual me formei no final de 2012 várias disciplinas, em algum sentido, tentavam construir bons argumentadores. Numa delas, chamada justamente Jornalismo Opinativo, meu melhor trabalho foi uma crítica que comparava 2 Broke Girls e Apartment 23, duas séries de comédia. Pois é.


Só que nos últimos dias, apesar de já ter desistido da vida de produtora de textos autorais exemplares, me peguei precisando dividir algumas impressões sobre um livro que estou lendo. E não sei se é culpa do meu ascendente geminiano, dessa época onde nenhuma existência é completa se não for estendida à internet ou do fato de não poder importunar constantemente meus amigos com as minhas reflexões sobre o tal livro, mas concluí que a melhor forma de despejar o que eu andava pensando (sim, não falar sobre o que eu estava pensando mantinha minha mente congestionada e angustiada) era, olha só, escrevendo em um blog.

No entanto era necessário esclarecer desde o início a que viemos (e é essa a intenção deste post), assim eu ficaria livre para ser irrelevante sem culpa (algo que me culpava no meu outro blog, que alimento a grandes lapsos temporais desde 2007). Não sou especialista em nada, então tudo que direi aqui é o mais completo e descabido achismo. Chutes de uma leiga. Não tenho a pretensão de incitar debates, crises e mudança de opiniões. Muitas impressões podem provocar em quem manja mais do assunto em questão um "dãr" acompanhado de uma revirada de olhos. Muitas coisas aqui podem ser óbvias e evidentes. Se forem, você pode pensar, depois de ler: "só isso?". Sim, é só isso.