quinta-feira, 2 de maio de 2013

a era do recalque

lá no final do século 19 freud observou que algumas pessoas condenavam certas posturas porque, secretamente, desejavam tê-las. a auto-censura criava uma aversão à coisa, fazendo com que o desejo fosse sepultado lá no fundo (carece de fontes, nunca li a sério sobre o assunto). o desejo era recalcado (enterrado, reprimido), e a pessoa saía falando mal do objeto.

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o professor que nos fez ler freud na faculdade de jornalismo disse que o austríaco era uma grande divulgador das suas descobertas e teorias, e que por isso escrevia de um jeito simples e sedutor - para arrebanhar pessoas. o que me faz pensar que talvez ele viesse a gostar do que aconteceu alguns anos depois com parte da sua obra. 

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em algum momento do começo do século 21, a cultura popular brasileira encontrou aquilo que freud via no seu divã vienense mais de uma centena de anos antes. alguém notou que as mulheres que criticavam as mulheres bonitas, sensuais, de derrière avantajado e que desciam até o chão o faziam porque provavelmente tinham inveja dos seus corpos e malemolência. eram recalcadas.

até aí nenhum problema. mas aconteceu algo (e ok, isso também não é um problema, é só curioso), acho, talvez sem precedentes na nossa história: uma expressão da psicanálise (vou utilizar um chavão) caiu na boca do povo. não sei (não sei mesmo, só passei a participar do mundo de forma mais ativa de uns oito anos pra cá) se algum dia você ia comprar tubaína no boteco e ouvia alguém falando “inconsciente”. ou ia numa festa e a música falava sobre arquétipos. ou insira aqui qualquer termo de freud, jung, lacan, melanie klein (insira você, eu não entendo nada disso). acho que o recalque foi a conquista final, última, radical e definitiva de freud. do além-túmulo, se é que, como disse meu professor, ele queria ver suas ideias divulgadas, ele está contente pelo seu encontro com o povo brasileiro.

acontece, caro sigmund, que (não tirando o mérito do seu trabalho), o recalque pegou porque o germe da coisa já estava em nós. a recalcada (sempre no feminino, por algum motivo, e aí mais uma vez nossas inclinações se encontram) é nada mais que a nossa invejosa. é a moça feia que se esforça pra ser feia porque aí se polariza com as bonitas e se torna mais apta a odiar as bonitas, a condenar as bonitas, a apontar o dedo pras bonitas e gozar secretamente quando as bonitas quebram a cara no amor ou são tidas como burras pelo pessoal da escola. é a velha desocupada que fica na janela ou no portão de casa puxando papo com os vizinhos aleatórios que vão passando e colhendo informações sobre as famílias vizinhas, os casamentos, os fracassos, as brigas, as filhas moças bonitas potencialmente piranhas, porque ela, ela mesma, é solteirona ou viúva, sozinha, abandonada e cria um papagaio. a recalcada é a conhecida mulher que precisa daquilo, que precisa de macho, a mal comida, a que precisa dar. a recalcada veio antes do termo freudiano, e muito, muito antes da sua incorporação ao vocabulário popular. a recalcada é um arquétipo atravessando os tempos.

e especialmente popular aqui no brasil, onde as mulheres precisam ser sensuais ou santas (atenção: nenhuma das escolhas é livre de prejuízos). o brasil é o campo fértil do recalque. imagine você as chances de nascer uma recalcada na islândia. eles nunca foram cristãos, então não carregam tanta culpa sobre seus corpos e sexualidade. o sol raramente dá as caras, o que faz as pessoas andarem com as pernas e colos cobertos. é tudo mais simples e coberto. o recalque precisa que as pessoas lidem de formas diferentes com seus desejos. que todos queiram, mas que nem todos façam, porque há ordens para não fazer. que todos queiram, mas nem todos consigam. o recalque nasce dessa dicotomia, dessa dialética do desejo, do querer e não poder. e aqui, enquanto o calor pressiona pelo descobrimento dos corpos, a mentalidade católica fala que não, que não é assim, que é expressamente proibido etc. aí nascem a divergência, os desejos reprimidos e a personagem da década: a recalcada. (lembrei agora: o recalque é abrangente e democrático. o recalque é a virose dos desarranjos de personalidade, o diagnóstico pau pra toda obra. porque as moças que descem até o chão não estão livres do recalque. fazer quadradinho de oito não te impede de ser chamada de recalcada).

falo isso porque faz uns dias que na televisão uma personagem na novela chamou a outra de recalcada. e porque uma adolescente na grande são paulo esfaqueou um colega que a chamava de recalcada. existem músicas de funk que tratam exclusivamente desse sentimento. uns anos atrás vi num ponto de ônibus um homem da classe trabalhadora com um boné de crochê onde se lia, abaixo do nome de um bairro da zona norte, “os recaucado treme”. 

a recalcada é popular. o recalque existe e ninguém duvida. e parece ser tão familiar hoje ao brasileiro quanto a ideia de que jesus nasceu da virgem maria em 25 de dezembro e que políticos não prestam. é ideia sacramentada. é dogma. 

é difícil que algum dia admitamos abertamente e sem censura, na televisão ou durante um almoço, que freud estava corretíssimo a respeito do complexo de édipo, eu mesmo tô ok com o fato de que meu filhinho de três anos deseja secretamente que eu morra para tomar o meu lugar. ou mesmo à ideia de que nossos sonhos, invariavelmente, expressam desejos (motivo: recalque. recalque strikes again). mas o recalque pegou. o recalque é batata.

é um diagnóstico. agora falta o tratamento (porque eu fiquei sinceramente preocupada com o fato de uma menina esfaquear um colega de classe porque recebeu, entre outros títulos, o de recalcada). freud, vem consertar a bagunça.

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